Por Nei Schimada
Domingo, almoço de domingo no casarão no Bexiga.
O Doutor Alvaro Neto virou a esquina cantando os pneus, encostou o carro de qualquer jeito, quase um metro da guia, freou, saltou, correu.
O motorista do carro que vinha atrás xingou todas as gerações da família Menna:
- Vaffanculo, testa di cazzo! - respondeu.
O Nono Alvaro estava completando 100 anos e por trágica coincidência, estava nas últimas, já deitado na cama. Giorno di nascere, giorno di morire, gritava o velho com o retrato gordo e risonho da nona Matilde no peito.
- La vecchiotta che mi aspetti, putana mia!
Alguns convidados para o que seria uma festa de aniversário se acomodavam pelos jardins, pelas salas, espalhados em nichos de consanguíneos e agregados.
As crianças sobravam em energia, correria, folguedos e fome. As lasanhas esfriando na mesa da cozinha. Os últimos vapores do espaguete. A salada murchando, a maionese amarelando e Gina abre espaço na geladeira para guardar o bolo de novo!
Tudo ia bem até mais ou menos onze e meia. Colocaram o velho na janela para as pessoas que vinham chegando o verem emoldurado logo na entrada. No fundo da sala, tocava uma coletânea de Adoniran, bem ao gosto do vecchio oriundo.
Mas onze e meia, quase isso ou nem isso, o velho levantou-se da cadeira, olhou o vazio do horizonte que dava no prédio em frente, segurou-se na cortina e desabou pela sala enquanto Adoniran dizia que "Arnesto convidou prum samba". Um médico, um médico, um médico!
Alvinho ou o Doutor Alvaro Neto estava de plantão, viria mais tarde, não dava pra largar a emergência das Clínicas num domingo. Mas ele largou. Era il nono, per favore. E Alvinho era o neto favorito.
Da porta do quarto viu que o velho não amanheceria a segunda-feira. Tirou a pressão, auscultou, soltou uma lágrima. Ao pé de ouvido disse à tia Laura que chamasse o padre.
- Ja chamei, Alvinho, ele não esta em São Paulo.
O moribundo, num estalo de lucidez disse que não precisava de padre.
- Mas Nono - disse Alvinho constrangido - tem que descansar a alma.
- Io capisco, ma serve qualquer porcheria, até macumbeiro!
Os filhos e filhas mais próximos que estavam no quarto começaram a discutir a situação. Padre Bernardo que celebrara os casamentos, as eucaristias dos netos e bisnetos teria que encomendar a alma do Nono.
- Padre Bernardo foi benzer o Palestra em Campinas contra a Ponte Preta.
- Padre Bernardo foi almoçar nos beneditinos.
- Padre Bernardo tem uma namorada.
Localizaram o celular do padre. Ele está em Campinas benzendo o Palestra. Passaram o telefone pro Nono. O Nono só ouvia e concordava com a cabeça. "Si si si. Non non non. Amém".
- O que ele disse, Nono?
- La mistica, capisci? - respondeu num sorriso que o rejuvenesceu cem anos. Adormeceu. Atacaram as lasanhas e saladas. As tias e carpideiras, as rezas.
II
Duas horas depois começou a ter convulsões, olhos retorcidos, gases, ruídos. Tiraram as crianças do quarto.
- Tragam as velas que o Nono esta indo!
- Non precisa perche io vado remando, tonto!
E foi.
Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da Estrovenga dos Corsários Efêmeros
Li de novo Beleza!!!
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