2 de mar. de 2009

O PATO

Por Nei Schimada

A viatura subiu a calçada e quase atropelou a carrocinha de pipoca. A turba gritava "Lincha! Lincha!" e o cordão de isolamento de PMs tentava manter a ordem. O delegado saltou acompanhado de seus asseclas e seguiu a passos firmes até o interior do teatro.
_ É esse aqui, doutor, o cara que essa muvuca aí fora quer pegar - disse o cabo empertigado em sua farda.
_ Desembucha, rapaz - disse o delegado enquanto tirava o maço de cigarros do bolso do paleto - Abre o bico.
_ Quando eu era pequeno...
_ Não, pô! Não vem com infância traumatizada, não! Conta logo porque essa gente toda quer te pegar, moleque! - interrompeu o delegado, gritando.
_ Mas, doutor, se eu não der essa introdução, não chego até aqui.
O delegado e o PM se olharam como se aquilo fosse corriqueiro e soubessem onde aquilo iria parar.
_ Tá bom, mas seja breve.
_ Quando eu era pequeno, meu pai colocava João Gilberto pra mim ouvir...
_ MIM não ouve! MIM não nada! - interpelou o delegado, apagando o cigarro numa xícara de cafe e apertando as palpebras pensando numa aspirina.
_ Como assim, doutor? - perguntou o PM.
_ Nada. Prossegue, rapaz.
- Minha mãe até cantava O Pato, O Barquinho quando eu ia dormir. Resumindo, doutor, eu ficava ouvindo João Gilberto o dia inteiro e acabei virando fã do cara.
_ Cabo Noronha, João Gilberto é esse cara no pôster, o artista de hoje nessa casa?
_ Positivo, doutor, mas era, pelo menos até o ocorrido.
_ Entao, doutor, quando comecei a trabalhar, meu primeiro salário foi pra comprar aquele violão que está todo quebrado ali e um dia eu disse pra minha mãe que ainda teria um autógrafo do João Gilberto nesse violão. Como quase nunca ele toca ao vivo, esperei 15 anos por esse momento...
_ Confere, cabo Noronha?
_ Dizem que sim...
_ Um dia, ouvi no rádio que ele ia dar esse show único nesse teatro. Eu nem sabia onde era esse João Caetano e na rádio estavam dando um ingresso para quem acertasse quantos minutos tem a música Chega de Saudade, no compacto original. Todo mundo sabe que tem 1 minuto e 59 segundos.
_ Todo mundo, cabo Noronha?
_ Há controversias, doutor.
_ Liguei pra tal emissora e ganhei o ingresso. Cheguei em casa, coloquei embaixo da imagem de São Jorge, meu protetor, e fiquei esperando o grande dia acontecer, que era hoje. Estou aqui desde ontem doutor. Era o primeiro da fila, dormi debaixo dessa marquise aí, eu e meu violaozinho. Aquele rapaz ali me deu uma térmica de café pra suportar o frio. Ele trabalha ai no teatro, é o gerente.
_ Depois toma o depoimento dele, soldado Noronha.
_ Positivo, doutor, mas eu sou cabo.
_ Tá, tá.
_ Então, doutor, esperei o dia todo e a fila foi crescendo. Tem gente aí fora que nem ingresso tem e queria entrar na marra. A moça da cafeteria ali do lado fechou porque acabaram com tudo lá dentro. Essa muvuca aí fora não é nem a metade do que tinha. Era gente demais. O trânsito parou desde lá em cima, na estaçãoo Santa Cruz. Tinha gente subindo na contramão pela av. 23 de maio, tremenda confusão, afinal é o primeiro e unico show do Mestre em 15 anos. Pois bem, doutor, ele chegou numa van, dessas importadas, brilhante, toda de vidro preto. Primeiro chegaram os motoqueiros da PM nessas Harley Davidsons que só rodam quando o Papa vem. Ele desceu carregando o próprio violão! Quanta humildade! Um cara que pode ter quantos roadies quiser, carrega o proprio violão! E então eu corri, doutor. Corri e fiquei parado na frente dele mostrando o violão e o pincel atômico. Ele olhou pra mim, pro violão, pro pincel, entrou de novo na van e foi embora. Só me lembro da primeira paulada na cabeça e agora tô aqui.
O delegado olhou pros lados, pro rapaz algemado, apertou as pálpebras, pensou nas férias em Mongaguá e ordenou, quase sussurrando:
_ Noronha, dispersa a geral, pega mais um café com o gerente e leva o pato pra delega.

Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da Estrovenga dos Corsários Efêmeros

Ouça “O Pato”, de João Gilberto, com 120 segundos…


Um comentário:

  1. Adorei Maravilha...Muito bom de ler, tenho lidoas outras cronicas, muito boas

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