Povos de São Paulo, tribos do mundo
Por Nei Schimada
I
Não há nada mais ausente nessa cidade que o silêncio.
Quando não passa nenhum carro na rua, é a televisão do vizinho que grita um gol ou a goteira da pia do banheiro que nunca conserto. Gota, gota, gota, gota. Pode ser também o vento que faz sua curva nas quinas dos prédios, rodopiando e voando num balé convidativo e uivante, balançando as roupas de baile e de domingo.
Tem a chaleira com apito de um enigmático vizinho do prédio que ainda não descobri onde é o seu apartamento. O apito dura pouco, o suficiente para que a pessoa caminhe da sala até a cozinha, desligue o fogo e despeje a água fervendo sobre a xícara, pode ser sobre um chá. Nesses dias penso sentir um ligeiro aroma de camomila, o que é apenas minha imaginação, um falsete de um desejo tolhido, conjecturas, ilusão. Nos dias de céu cinza é o ritmo caótico das gotas de chuva dedilhando o toldo de zinco da garagem do sobrado em frente.
O silêncio foge desta cidade e das nossas vidas mesmo nas madrugadas mais frias e recrudescidas do inverno. Nas horas da manhã, um pouco antes do céu ficar naquele tom lilás, no ponto mais agudo do orvalho das vésperas, quando acredito que todos os sons da cidade se esconderam num longínquo sussurro, ouço o primeiro comboio que atravessa os trilhos em direção à Estação da Luz, secretamente, quase impossivelmente suave e sutil nas suas toneladas homéricas e, lenta e gradualmente - nessa hora é preciso fechar os olhos para realmente vê-lo - ir parando na plataforma escura sob o inusitado e fresco odor dos hálitos recheados de café.
II
Há um vulto na janela do sexto andar do prédio em frente. Parece um homem e acendeu um cigarro. A televisão brilha atrás dele numa luz tremida projetada na cortina. Milhões de pessoas nesta cidade e só tenho a ele como contato para um exterior mudo, e como ele não sabe que estou aqui, também cego.
Muito mais que meus cinco sentidos, o que me intermedia à realidade é uma janela no sexto andar cujo personagem ignora meu pedido de atenção. Um grito parado na garganta. Se eu pudesse vender todos os gritos que não dei, estaria milionário e não aqui, sentado no chão da sala vazia olhando para cima vendo a felicidade escapar das minhas mãos e, definitivamente, dos meus olhos.
Não sei o que farei quando ele apagar o cigarro, se cansar do movimento da rua e entrar, fechar a cortina para o meu incógnito e invisível espetáculo. Não sei o que farei quando amanhecer. Não sei o que fazer se chover. Ou se todos realmente desaparecerem.
E se ele ficar ali para sempre, devo ficar e perpetuar-me como um incoveniente e silencioso convidado de suas fáceis ações de fumar e olhar a vida alheia de uma janela do sexto andar?
A minha vida lhe é alheia. A dele não, me pertence nesse instante onde acho que nossos olhares se encontraram no escuro.
Eu sou o sexto andar. Ele é o meu reflexo num espelho surrealista. Nós somos uma única massa de solidão e destinos cruzados por minutos numa madrugada de verão. Eu sou todos os solitários em todas janelas de todos sexto andares do mundo.
Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da Estrovenga dos Corsários Efêmeros
A Alma da cidade...
ResponderExcluirO som da cidade é musica para meus ouvidos...
ResponderExcluirEsta cidade tem som de tiro de revolver, grito dos assustados,e murmurio de medo nos becos e nas vielas...Cidade do crime e da dor!
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