17 de fev. de 2010

“OLYMPIA” – UMA DEUSA REPUGNANTE

Arte & Cultura

Por Floh Murano

"Olympia", obra de  Edouard Manet

O século XIX gerou várias mudanças no cenário europeu que foram decorrentes da Revolução Industrial e das revoluções populares que vinham acontecendo desde o séc. XVIII. Os trens transformaram o conceito de velocidade, as fábricas o de tempo, e a iluminação artificial possibilitou a vida boêmia. A Paris da época era vibrante, alegre e estava em constante movimento. Sua ascendente classe média (nouveau riche) passou a ditar o gosto e as diversões.

O reflexo deste cenário na arte resultou no movimento realista, que buscou retratar o dia-a-dia do homem comum, a banalidade do cotidiano, o trabalho na cidade ou no campo, a espera pelo bonde ou o trem, a boemia, a prostituição, enfim, a realidade das ruas no momento presente.

Edouard Manet (1832-1883) foi fruto dessas transformações, um precursor que trouxe em sua arte todas as inovações técnicas e temáticas que inspiraram a modernidade que estaria por vir estando atrelado à estética naturalista1, e lutando para ser aceito nos salões oficiais e compreendido pela sociedade da época. Quando seu quadro “Olympia” foi exibido no Salão de Paris de 1865, provocou um grande escândalo entre os críticos, que o julgaram como “arte indecente”. As pessoas gargalhavam olhando para o quadro imaginando se aquilo era uma paródia a um tema clássico ou se era de fato um retrato.

O fato da tela (Olympia) não ter sido destruída, se deve unicamente aos cuidados tomados pela administração[1]. Olympia foi baseada na “Vênus de Urbino” de Ticiano, de 1538. A composição de Manet era clássica e com cores refinadas, mas a execução e o tema eram contemporâneos. A forma que Manet pintou também era incompreensível para os padrões da época: ele criou uma pintura “chapada” dando a impressão de que Olympia tivesse sido colada à tela. As tintas pareciam que não haviam sido misturadas, dando um aspecto sujo à composição. A nudez de Floh MuranoOlympia foi cruamente representada, diferentemente dos nus suaves e belos da época.

Manet tinha uma forma especial de trabalhar a cor: ele fazia com que sua qualidade se identificasse com a quantidade de luz, e assim conseguia criar o efeito chiaro-scuro clássico. “Tudo se apresentava à vista através da cor[2], ou seja, utilizando-a ele conseguia ressaltar as partes que queria que fossem vistas em primeiro plano; criava uma hierarquia visual ditada pela cor e pelo seu efeito chiaro-scuro, onde a sombra era apenas uma mancha que se justapunha às outras cores, mais ou menos luminosas.

A reação popular deixou Manet arrasado, pois ele queria ser aceito, queria expor nos salões e desejava que suas inovações mudassem a pintura tradicional francesa. No entanto, Olympia passara dos limites. Ela não era Eva nem Vênus, mas sim uma mulher contemporânea, uma proletária, que desavergonhadamente posava nua oferecendo-se ao espectador. Seu nome verdadeiro era Victorine Meurent, mas Manet a chamava de Olympia. Victorine, importante figura na vida de Manet, ficou com o mérito de ter sido a modelo dos dois maiores ícones de sua pintura: “Almoço na Relva” e Olympia[3].

Olhando para o quadro atualmente, é difícil de imaginar o porquê de tanta polêmica na época. Mas num tempo em que a hipocrisia do conservadorismo reinava, e que o mundo da boemia era rechaçado pelas pudicas damas da sociedade e suas famílias conservadoras, que preferiam acreditar que o mundo profano não existia, aparece um quadro que retrata justamente a figura mais execrada: a cortesã. Deitada em pose de deusa e encarando quem a olha com ares serenos, Olympia incomoda, pois ela, além de sensual, é convidativa.

As cores fortes e o contraste do chiaro-scuro fazem com que Olympia saia do quadro e traga o espectador ao seu leito. Como uma prostituta ousaria ser representada como uma Vênus? Olympia encara, provoca, espera, mostra-se e seduz. Ela está nua e ornamentada: uma pulseira de ouro, um tamanco (pois o outro já escorregou na cama), uma fita preta no pescoço, e um hibisco (flor que simboliza o amor e a sexualidade) no cabelo. Sua criada negra lhe traz flores, provavelmente mandadas por um de seus amantes. Aos seus pés um gato preto.

Contrastando propositalmente com a pele branca de Olympia, o fundo, a serva, e o gato praticamente se fundem num tom escuro. Tem-se a impressão de haver uma luz sobre Olympia, que também incide sobre os lençóis, a roupa da criada e as flores. Na verdade, não há uma luz sobre essas partes e, sim, a cor faz o destaque, e seu tratamento dá qualidade à luz e sugere o que estaria no primeiro plano. Através do olhar de Olympia, pode-se sentir a presença de um espectador ausente que estaria, hipoteticamente, sendo recebido por ela.

Manet não somente expôs a prostituta aos olhos do mundo, mas transformou-a em deusa. E isto era uma blasfêmia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BROMBERT, Beth Archer: Edouard Manet – Rebelde de Casaca; tradução de José Guilherme Correia – Rio de Janeiro; Editora Record 1998.

ARGAN, Giulio Carlo: Arte Moderna- Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. Cia. das Letras, 10ª reimpressão, Trad. Denise Bottmanne Federico Carotti.

Coleção Gênios da Pintura, Edouard Manet; Vol. 10, SP Abril, 1974.

Webgrafia:
Mary Elizabeth Williams http://archive.salon.com/ent/masterpiece/2002/05/13/olympia/index.html

Filmografia:
Olympia - O Choque do Nu; Grandes Séries: Choque Cultural; GNT


1- Denomina-se naturalismo o movimento artístico que se propõe a empreender a representação fiel e não idealizada da realidade, despojada de todo juízo moral, e vê a obra de arte como uma "fatia da vida". O ideólogo da estética naturalista foi o escritor francês Émile Zola, cujo ensaio intitulado "Le Roman expérimental" (1880 "O romance experimental") foi entendido como manifesto literário da escola. (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda)

[1] Extraído do livro Arte Moderna de Giulio Carlo Argan, Cia. das Letras, 10ª reimpressão, pg.97.
[2] Dito por Antonin Proust http://archive.salon.com/ent/masterpiece/2002/05/13/olympia/index.html Mary Elizabeth Williams, pg.1; Acesso 02/02/10.
[3] Olympia - O Choque do Nu; Grandes Séries: Choque Cultural; GNT

*Floh Murano é arquiteta e históriadora da arte, colaboradora da seção Arte & Cultura

Leia também:
FLOH MURANO ESTRÉIA CRÍTICA NA SEÇÃO ARTE & CULTURA

8 comentários:

  1. Carlos Antonio Marques18 de fevereiro de 2010 às 00:45

    Quem é artista é artista!!!!

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  2. "Outra aula de história da arte!
    Muito bom texto,além de esclarecedor, agradável de ler, pois parece que estamos te ouvindo, comentar sobre o quadro.
    Parabéns São Paulo Urgente, parabéns, querida Floh,
    beijos
    Carmo!"

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  3. O Blog fechou? Ué não tem mais posts? Que pena!!

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  4. Muito legal o teu texto, Floh! Assim dá gosto de conhecer História da Arte.
    abr
    Angela

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  5. Heitor,

    O blog não fechou, não! Por hora, talvez não tenhamos o mesmo número de posts que no ano passado, mas isso é temporário.

    Os blogueiros estão trabalhando fora de casa e, por enquanto, não estamos colocando posts diários. Mas continue acessando o São Paulo Urgente - já passou o Carnaval e o paulistano voltará ao ritmo de sempre!

    Abraços,

    Flaviana Serafim e Gladstone Barreto

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  6. Tenho lido estes artigos e aprendo muito, sou de Campinas, e sou pintor, é muito bom aprender, espero ansisamente o proximo Obrigado

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  7. Quem sabe sabe, não basta apreciar...
    Floh, vc é linda!!!

    Pijama

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  8. Culta, eloquente...consegue prender a atenção com um texto inteligente e direto!
    Dá vontade de ler mais e mais...
    Allan

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