27 de abr. de 2009

DEMAGOGIA FRANCA

Povos de São Paulo, tribos do mundo

Por Nimageei Schimada*

- Bom dia, meu amigo, é aqui que faz certidão de nascimento?
Ele estava na porta do cartório muito antes da porta subir. Já sorria desde então escancarando a boca como quem tem toda felicidade do mundo no bolso do peito da camisa. Era o papelzinho com o nome que tinha escolhida para a primogênita.
- É aqui mesmo. Trouxe toda a papelada do hospital, da mãe e seus documentos pessoais?
- Sim, meu amigo.
- Então pegue esta senha que eu lhe chamo pelo número.
O papel tinha o número 001. Mais do que um dígito anterior ao dois, ao três e ao infinito, era o número 001 de uma centena, aqueles dois zeros na frente davam-lhe esse poder centenário, muito mais abrangente e especificador, limitando sua área de influência. Parecia que o 1, apesar de solitário e único, tinha o poder de mais de 99 outros números posteriores, maiores, mas dicotomicamente inferiores.
Uma civilização que acredita no número 1 como o mais importante de uma cadeia hierárquica de infinitos outros números renegados ao fracasso só pode buscar a felicidade ególatra. Uma pena.
- Número um!
- Eu.
- Pois bem, senhor Ademar de Jesus. Sua esposa... Glória Franca, é Franca mesmo? Não é Franco não? Nem França? É menino ou menina?
- É Franca mesmo. Menina, minha primeira, meu amigo.
- Ótimo, parabéns. Qual vai ser o nome dela?
- Um nome lindo, ela vai se chamar Demagogia Franca de Jesus.
- ... Não pode, demagogia não pode. O senhor sabe o que significa demagogia?
- Olha, meu amigo, eu li no jornal que muitos políticos usam dessa demagogia em seus discursos e pensei, poxa, se gente tão bacana e importante usa isso, minha filha vai ter o nome disso. Isso deve ser muito bom pra estar na boca dessa gente.
O escrivão olhou para rua em busca de uma bóia salva vidas, uma escada magirus, um cão são bernardo, uma aspirina, um disco voador, qualquer coisa que o salvasse daquela manhã de segunda-feira.
- Não, seu Ademar, infelizmente demagogia não vai dar não. Aqui não.
- Olha, meu amigo, meu nome é Ademar e Demagogia tem esse "Dema" do meu nome e minha mulher se chama Glória, Demaglória não ia ficar bonito e como eu li no jornal que...
- Eu sei! Eu sei! Mas não dá. Quer saber? Sabe aquele ex-governador meio turco, de óculos fundo de garrafa, meio careca? Ele faz demagogia. Sabe aquele senador que já foi presidente da República? Ele faz demagogia. E olha que tem dois, o gomalina e o bigodão. Sabe aquele ex-governador do Rio, um gordinho que tem uma mulher gordinha? Ele também faz demagogia. Olha quem são esses caras, seu Ademar, pelamordedeus!
- Mas meu amigo, meu falecido pai me deu esse nome por causa do governador Ademar de Barros! Meu pai era um ademarista e eu li que ele também fazia demagogia! Esse nome é muito importante para a minha família, minha vida, entende?
- Pensa bem, seu Ademar...
- Meu amigo...
- O senhor acha que eu sou seu amigo mesmo?
- Mas é claro. É o senhor que vai colocar o nome da minha filha neste papel que vai acompanhá-la por toda a vida, isso lhe faz meu amigo, com certeza.
- Pois bem, seu Ademar, eu vou lhe explicar o que significa demagogia, certo? Se o senhor gostar, tudo bem, eu boto esse nome nesse papel. Mas se não gostar, escolhe outro, combinado?
- Combinado, meu amigo - estendeu a mão por cima do balcão para cumprimentá-lo, firmando o acordo de cavalheiros.
Aos poucos, outros funcionários do cartório aproximavam-se mal disfarçadamente para ouvir até onde ia aquela conversa.
- Preste muita atenção. Eu trabalho aqui há muitos anos e já escrevi o nome de muita gente. Tem gente que já deve estar na faculdade hoje em dia. De tanto escrever nomes e mais nomes, comecei a pesquisar os significados. E demagogia não é uma coisa muito bonita para se dizer de uma moça.
- Meu amigo, não me diga que...
- Te digo.
- Demagogia é aquilo?
- É pra lá disso. E olha que ia junto ao nome de Jesus, seu Ademar! Padre nenhum ia batizar a sua menina.
- Mas... se político usa, deve ser bom...
- Mas é homem, seu Ademar. Homem pode.
- Então, tenho mesmo que mudar o nome, meu amigo.
- Demorô, seu Ademar.
- Então bota ai... Decadência Franca de Jesus.
O escrivão olhou para o próprio pé como quem joga a toalha num ringue. Levantou os olhos para o homem que sorria toda a verdadeira felicidade de ter uma recém vidinha no mundo que lhe chamaria de pai.
- Perfeito, seu Ademar, ela vai ser a sua Decadência - respondeu encarando-o, resignado e fraco.
- Só minha, meu amigo, só minha - sorrindo para sempre.

Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da Estrovenga dos Corsários Efêmeros. Leia mais em: 
QUEM TE VIU, QUE TE VÊ
A GALÁXIA DOS AFÔNICOS
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JANELA DE COZINHA
LA MISTICA, CAPISCI?
ESPERANDO ROSA
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