Povos de São Paulo, tribos do mundo Tinha marcado um churrasco para o domingo. Já tinha dado uma olhada no noticiário do tempo e estava escrito "sol com nuvens esparsas", bom sinal. Os satélites e barômetros japoneses nunca falham. Entre quem compra isso, quem compra aquilo, o importante era resolver o local da carnificina. O melhor lugar, primavera ou verão, é às margens do Rio Tenryu. Escolhemos ali no bulevar perto da ponte azul, local muito disputado porque é arborizado, tem convenience store por perto e sanitários limpos. Ou quase. São várias árvores de estatura média com copas grandes e redondas, excelentes sombras. Mas apenas quatro delas têm um banco circular ao redor do tronco, perfeito para abrigar as traquitanas de uma churrascada. Além de servir para sentar, claro. E como todo mundo quer assar uma carne no domingo exatamente em uma das quatro árvores, resolvi marcar o território com uma lona, um dia antes, no sábado à noite. Com o céu quase lilás do fim de tarde primaveril, fui lá com uma lona azul - uma das traquitanas que tenho para camping, piqueniques e churras - e escolhi a melhor árvore, a mais copuda, com um gramado ao redor, nem muito longe, nem muito perto do estacionamento. Havia algumas pessoas passeando com seus cães, outras faziam suas corridinhas e alguns casais de namorados. Estendi a lona, amarrei, coloquei pedras espalhadas por cima e vi que o vento não carregaria. Ancorei meu marco territorial e, feito um Colombo, tomei posse da minha pequena América. Diferente do que possam imaginar, aqui ninguém lhe toma a lona e é muito comum reservar um lugar para piquenique dessa forma, principalmente nos festivais de flores e matsuris (festivais de rua). Marcamos para as dez e meia da manhã do domingo. Como moro perto, cheguei às dez para descarregar algumas coisas. Havia um grupo de brasileiros estabelecidos bem próximos à minha lona, uns 20 metros.Todos me seguiram com os olhos, olharam feio para mim. Quando passei com algumas cadeiras de armar, ouvi: Voltei para o carro em silêncio para buscar outras coisas e escutei: Tirei mais algumas coisas do carro e passei bem perto do pessoal e disse: Ficaram com cara de tacho. Nunca vi um tacho facial, mas aquela era, sem dúvida, uma cara de tacho. “Olé!” - pensei comigo. Não que me preocupe, é da minha natureza sê-lo, mas estou com cara de japonês. Não é a primeira vez que acham que sou japonês. Muitos japoneses acham que eu sou japonês e vem falar no japonês arisco e rápido de quem é nativo. Explico que sou brasileiro e ficam surpresos. Eu mesmo já fiz confusão com outros brasileiros, mas nunca de forma vexatória. Depois de tantos anos aqui no Japão, descobri que estou com o gestual local. Uma das diferenças básicas entre uns e outros, brasileiros e japoneses, é o gestual espalhafatoso dos trópicos e o tímido e comedido do japonês. Assim como dizem que as palavras escandinavas e germânicas têm poucas vogais por causa de seus longos invernos e os latinos são sôfregos em vogais e sons abertos por sua origem calorenta e mediterrânea, acredito que a nossa quase franca parvoice seja por causa do calorão. Mas cá estou me enviesando por outra cultura, na verdade um grande silêncio adormecido oculto, originário dos meus avós, talvez do pequeno gesto de pegar um norizushi com o hashi sem desmantelá-lo. Por essas e outras é que acredito que o homem não é a sua cor da pele, dos olhos, cabelos. O que faz o indivíduo é a geografia ao redor. O que faz o ser social é a sociedade, a família, os grupos. Mas o indivíduo, aquilo que cultivamos tão intimamente que nem mesmo nós sabemos o que vem a ser, este - dito alma ou caráter - é feito por tudo isso ao redor. E são os cinco sentidos que nos ligam ao todo. Educá-los é mais que uma necessidade, é uma obrigação. Nem uns, nem outros, os histriônicos ou os tímidos, estão certos ou errados. Ambos são o que são. O que acredito que possa acontecer é que ao voltar para o Brasil, eu deixe de ser o brasileiro que virou japonês para ser o japonês que é japonês. Porque se eu era japonês, coreano ou chinês no Brasil, já fui brasileiro no Japão, deixei de sê-lo para cair no limbo das nacionalidades. No fundo, o que me resta de fato são dois idiomas e várias histórias. Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da Estrovenga dos Corsários Efêmeros. Leia mais em: |
11 de mai. de 2009
TODO IMIGRANTE É A PULGA ATRÁS DA ORELHA
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E a pulga, é nissei, ou sansei?
ResponderExcluirÉ sansei, Rosas.
ResponderExcluirA sua conclusão é tbém a minha. Prefiro ser fruto da migração, da transformação e concepções ao confinamento ideológico. Não é o RG/passaporte a estabelecer o meu indivíduo. LuMa
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