22 de jun. de 2009

A CORRIDA DE SÃO SILVESTRE – OBSCURAS ORIGENS

Povos dimagee São Paulo, tribos do mundo

Por Nei Schimada

No dia 31 de dezembro de 1924 aconteceu a primeira Corrida de São Silvestre, criada e idealizada pelo jornalista Cásper Líbero a partir de uma corrida noturna que ele viu em Paris, onde os corredores revezavam-se passando uma tocha até a equipe e a tocha vencedora chegarem à linha final.
Essa é a versão oficiosa dos fatos. Há também o relato extraído do diário de António Dannone y Montarroyos, o único engraxate que visitou a exposição dos quadros de Anita Malfatti na Semana de Arte Moderna de 1922. Viu Victor Brecheret, mas achou as estátuas muito sérias. Dizia que "estátua tem que ter cara triste igual à imagem de São Vito, Mártir".

O diário de António foi encontrado no sótão do penúltimo casarão em pé da Avenida Angélica antes de ser demolido para construírem uma clínica no terreno. Quem o encontrou foi seu neto, médico oftalmologista. Alguns trechos foram suprimidos para melhor compreensão.

Hum de fevereiro de 1922
“Eu, Duílio e Bezerra caminhamos desde a Igreja de São Gonçalo até o Largo São Francisco para nos encontrarmos com alguns amigos calouros da Faculdade de Direito para guardarmos um match de association num dos campos da várzea do Glicério. Não são muitas pessoas que tem uma ball de association na cidade, os ricos filhos do café o tem.
Perdemos por causa dos três goals que Bezerra deixou passar. Bezerra não é um bom goalkeeper. Eu disse a ele que um bom team sempre começa com um bom goalkeeper, mas fez-se de rogado.
Muitos insistem em chamar o association apenas de football, termo ridículo, não vai pegar".

Quinze de fevereiro de 1922
“Acabei de chegar de uma exposição de arte assim dita moderna. Admirei algumas coisas e achei outras sem explicação. Gostei dos quadros de uma tal Anita, uma moça tímida que escondia-se a cada elogio.
Alguns estudantes cuspiam nas escadarias do Theatro Municipal. Outros defendiam os declamadores de poesia.
Algumas senhoras fumavam em público - realmente há algo desvairado no que eles chamam de Paulicéia. "Deusa da Primavera", de Victor Brecheret. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foto: Gladstone Barreto. Clique para ampliar"Deusa da Primavera", de Victor Brecheret. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foto: Gladstone Barreto. Clique para ampliar
No fundo, gostei de tudo, até mesmo de algumas esculpturas com narizes retos e com os semblantes sempre iguais. Vitorino ou Victor é o nome do artista. Lembro-me de seu sobrenome Brecheret, pois é o mesmo da família aqui do lado que cria gansos para fazer fois gras.
Preciso mudar de casa, pois os gansos exalam odores insuportáveis. Mesmo gostando desses moços e suas modernidades excêntricas, logo serão esquecidos. Essa modernidade não vai pegar".

Hum de maio de 1922
"No jornal está escrito que os comunistas de Moscou comemoram o dia do Trabalhador com um dia de folga a todos os camaradas trabalhadores. Creio que em todos outros dias do ano e de labuta existem para que nós comemoremos os dias de descanso.
Se a minha oficina parar, não há como entregar as solas e emborrachados dos fregueses. Só não abro aos domingos, que é o único dia de match de association, não abro nem por decreto do presidente Bernardes.
Hoje, durante o match do Germânia versus Corinthians, pensei num evento esportivo com estes ideais modernistas que ventam pelos cafés. Preciso encontrar meus amigos e irmos todos para ver o sr. Mário de Andrade e pensarmos e realizarmos tal contenda".

Seis de Julho de 1922
"O amigo Mário de Andrade não achou a idéia muito interessante. Já seu parceiro Oswald de Andrade pensou numa corrida de pierrôs, arlequins e colombinas pela madrugada. Eu disse que para isso basta-nos o carnevale de Veneza ou o entrudo ainda comemorado na Capital do Rio de Janeiro.
Acredito que as festas populares nas ruas são tipicamente européias. Eles têm as grandes praças e lá podem comemorar sob noite de temperatura amena. O calor dos trópicos não é propício à tal baderna do populacho. Aqui no Brasil não pega.

Havia na reunião um jornalista chamado Cásper Líbero e logo tornamo-nos amigos. Ele disse que poderíamos comemorar o Centenário da Independência com vários eventos esportivos como se fossem as festas olímpicas acontecidas dois anos antes, em Antuérpia, Bélgica.
Não, eu disse, há de ser apenas uma corrida e deve ter um tom modernista com é a corrida no autódromo de Indianápolis, cidade estadunidense, cujo traçado é um retângulo.
Desdenhando de meu pensamento athlético-cubista, meus amigos Duílio e Bezerra perguntaram se era para os athletas correrem ao redor do quarteirão, 100 voltas ou mais. E riram".

Oito de setembro de 1922
"Ainda estou com a sensação que há ondas violentas se movimentando na minha barriga como uma ressaca. As comemorações do Centenário da Independência saíram dos saraus, chegaram às ruas e vararam a madrugada com alguns pracinhas e oficiais confraternizando com as satisfatórias moças dos Campos Elíseos. Pela cidade toda o populacho comemorou cantando ao redor das garrafas sempre cheias e pequenas fogueiras.
Estou triste pela corrida não ter se realizado. O recém amigo Cásper Líbero partiu para Santos para pegar o paquete, descer na Capital e de lá seguir para a Europa. Sentirei saudades".

Trinta de novembro de 1924
"Cásper Líbero voltou há meses, mas só hoje o encontrei às portas do Mappin, onde passei para algumas compras natalinas. Ele também. Além de rever o saudoso amigo, pude saber de antemão a notícia que aquela corrida que eu concebera há anos iria acontecer no último dia do ano e se chamaria Corrida de São Silvestre. Não gostei do nome. Quem é esse São Silvestre? Há algum santo católico que se preza que se chama Silvestre? Acho melhor Corrida de Ano Novo. Esse nome Corrida de São Silvestre não vai pegar".

Nei Schimada, 43, punk, poeta e dekassegui, escreve de Hamamatsu shi - Japão. É blogueiro da

Estrovenga dos Corsários Efêmeros. Leia mais em:
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